domingo, 28 de junho de 2015

Reflexão sobre Gn 2,18

“Javé Deus disse: ‘Não é bom que o homem esteja sozinho. Vou fazer para ele uma auxiliar que lhe seja semelhante’”
(Gn 2,18, Bíblia Edição Pastoral).

É incrível como esse pequeno versículo é tão rico. Gostaria de convidar você, amigo Leitor e amiga Leitora, para meditarmos juntos.

Iniciemos com uma reflexão acerca do nome de Deus. Ao longo do primeiro capítulo, no texto original hebraico, Deus é denominado Elohim (אֶלֺֹחִים) por 33 vezes (=Deus Supremo, Juiz); aqui, porém, muda-se para YHVH Elohim – o mesmo nome com o qual Deus se revela a Moisés (Ex 3,14). Podemos dizer que temos a passagem de Elohim para Javé, do Justo Juiz para o “Aquele que é” “rico em amor e fidelidade” (Ex 34,6).

 
E mais: o papa Bento XVI, na época ainda cardeal, em seu livro Introdução ao Cristianismo, ao comentar acerca do nome de Deus, dizia que Javé tem a conotação do Deus que está sempre junto aos seus filhos e que o acompanha onde quer que ele vá. No caso de Gn 2,18, esse Deus, que conhece as profundezas das necessidades humanas, vê Adão e diz: “não é bom que o homem esteja sozinho”.

“Javé Deus disse”... expressão que, até aqui, foi repetida 11 vezes (essa é a 12ª) ao longo das páginas iniciais da Escritura e toda vez que a expressão hebraica apareceu algo importante aconteceu: foi criado a luz, o firmamento, as águas, a relva, os luzeiros etc. Então, algo importante aqui também será criado! - a importância da mulher!

No original hebraico, o verbo ’amar (אׇמַר), significa mais do que, simplesmente, “dizer”, implica também é continuidade e conclusão, neste caso, do ato criador – compare com Gn 2,16s e perceba que a sequência aparece após uma escolha fundamental, entre a vida e a morte (note o quanto a relação homem e mulher é colocada como possibilidade de vida e morte).

Mas, sobretudo, podemos perceber o movimento da vontade divina neste verbo hebraico: Deus que “deseja fazer” uma auxiliar para o homem (é assim que a TEB traduz Gn 2,18).
 
O que Deus diz? “Não é bom que o homem esteja só”!
 
É a primeira vez que a palavra “bom” aparece na Bíblia em forma negativa (perceba, porém, que aqui não se diz que é “ruim”). Em hebraico, tov (טוֺב) designa tanto o bem estar físico e psicológico (satisfação, bem-estar, prazer, felicidade, prosperidade), quanto o bem moral (bondade, benevolência, honrado, digno). Tov refere-se a tudo que é valioso, belo, formoso, precioso...

Quando se traduziu esse trecho da Escritura para o grego, utilizou-se a palavra καλον, kalon, belo, bom, oportuno, conveniente, melhor, ressaltando, principalmente, o fato de “não ser adequado”, justo, nem decente, a solidão original do homem. O texto exprime a condição degradante da solidão humana: isto não condiz com a dignidade que Deus quis para nós!

A solidão está diante do ser humano o tempo todo, como algo lançado a sua face, ameaçando, degradando-o; onde quer que vá, o homem está sujeito a essa sensação de abandono. Por isso, Deus lhe oferta gratuitamente alguém que lhe seja como que proteção à angústia de se viver só, um ser que lhe console nas horas difíceis da vida e possa mitigar o terrível desamparo...
 
É a partir desse olhar misericordioso que Deus se prontifica e sua vontade se transforma em ato: “vou fazer para ele uma auxiliar”. Na tradução da Bíblia Ave-Maria, exalta-se essa ação como uma graça, uma dádiva, um presente de Deus: “vou dar-lhe”.

A palavra hebraica ezer (עֵזֶר) pode ser traduzida como auxiliar, ajuda, ajudadora, auxiliadora, adjutora. Ela carrega em si noções de apoio, assistência, socorro, proteção, consolo.

Longe de ser uma degradação da mulher, Deus eleva a mulher ao status de graça para o homem – lembre-se que na Sagrada Escritura, Deus é chamado de Auxílio, Ajuda (Sl 29,11). Alguém que lhe seja “semelhante”. Alguém que lhe “corresponda” (de acordo com a tradução da CNBB) – bonito o setindo desta palavra, significa “está em harmonia, em concordância”, “responder junto”, que lhe “se comunique” (= para tornar-se um?).

O papa João Paulo II, comentando essa passagem em uma homilía às famílias dizia que “no Livro do Génesis, o autor sagrado delineia a existência fundamental sobre a qual se baseia a união esponsal de um homem e de uma mulher, e com ela a vida da família que dela tem origem. Trata-se duma existência de comunhão. O ser humano não é feito para a solidão, traz em si uma vocação relacional, radicada na sua própria natureza espiritual. Em virtude desta vocação, ele cresce na medida em que se relaciona com o próximo, encontrando-se plenamente "no dom sincero de si mesmo" (Gaudium et spes, 24)” (15/10/2000).

E na carta às mulheres (n.7), em 1995, o papa afirma: “na criação da mulher está inscrito, desde o início, o princípio do auxílio: auxílio — note-se — não unilateral, mas recíproco. A mulher é o complemento do homem, como o homem é o complemento da mulher: mulher e homem são entre si complementares. A feminilidade realiza o « humano » tanto como a masculinidade, mas com uma modulação distinta e complementar”.

“Quando o Génesis fala de « auxiliar », não se refere só ao âmbito do agir, mas também do ser. Feminilidade e masculinidade são entre si complementares, não só do ponto de vista físico e psíquico, mas também ontológico. Só mediante a duplicidade do « masculino » e do « feminino », é que o « humano » se realiza plenamente”.

Na Carta apostólica "Mulieris dignitatem" (n.30), o papa João Paulo II reafirma que “O paradigma bíblico da mulher, "colocada" pelo Criador ao lado do homem como "auxiliar semelhante a ele" (Gn 2, 18), revela também o verdadeiro sentido da sua vocação. A sua força moral e espiritual brota da consciência de que "Deus lhe confia de modo especial o homem, o ser humano".

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